quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O homem que inventaria o circo

A vida mambembe de um palhaço apaixonado pela arte circense.

Ao passar pelas luzes da entrada, frente a crianças de todas as idades e nem sempre novas, sob a lona colorida, é que se chega ao picadeiro. Do ponto central do circo, pode-se ver uma meia lua de expressões que variam de sorrisos ansiosos a abraços tímidos em busca de proteção. No círculo de cores e luzes, todos vão em busca de alegria. Em pouco tempo se escuta as boas vindas e, senhoras e senhores, o espetáculo vai começar! É nesse momento que os olhares percebem o palhaço, e este fita de volta a platéia curiosa. Com o rosto destacado pela maquiagem habitual e vestido de apetrechos chamativos, é conhecido como Matraca. Mas, embaixo dessa superfície estão as marcas do longo tempo dedicado a vida mambembe de Celso Stevanovich.

Seus cabelos já são grisalhos, e a mania de fazer graça marca o rosto, mas preserva o corpo e o espírito de um homem de quarenta e sete anos. O sotaque hermano não deixa despercebido de onde veio, e acrescenta à lista saudosa de quem não para em um lugar só. Apaixonado pela profissão, Stevanovich vive do e para o circo. Seguidor da tradição familiar, ele faz parte da quarta geração de circenses. Suas influências são nomes de peso como Charles Chaplin, Kiton, Jerry Lewis e Oleg Popov, mas seus verdadeiros professores foram seu tio Cepillo e seu primo Pipico, ambos palhaços musicais. Seu início se deu no antigo Circo Imperial, em seu país de origem, a Argentina, em 1979. De lá, para o mundo.

Há quinze anos, Celso pode ser encontrado no Mundo Mágico de Beto Carrero, juntamente com sua esposa e seu filho, companheiros da prática itinerante. Ele já exerceu muitas funções no espetáculo: foi trapezista; domador; animador; malabarista; equilibrista e, por fim e sempre, palhaço. “Tudo menos dono de circo”, brinca ao resumir a extensa lista. Para tanta habilidade, é preciso treinar todo dia, cerca de duas a três horas. Se a apresentação é nova, mais dedicação ainda. Muitas idéias do espetáculo são sugestões próprias, mas, humildemente, explica que “quase tudo já foi inventado, é só reciclar.”

Durante a semana, os artistas acordam tarde, almoçam, ensaiam antes ou depois do espetáculo. Mas a rotina não é feita só da labuta. A segunda feira é o dia sagrado de descanso e sempre rende um jogo de futebol ou churrasco. De acordo com Celso, uma das coisas boas de morar na estrada é que se conhece muitas pessoas e lugares. Mas nem tudo é doce, “o ruim é que é preciso viajar para ver sua família e amigos”, lamenta o artista. Com o tempo, se acostuma com as saudades e toma gosto pela prática e manias do circo.

Celso nunca entra no picadeiro se não for para se apresentar ou ensaiar e não se senta nos caixotes dando costas à arena. Sua fala arrastada carrega um vasto vocabulário de gírias próprias da arte e não resiste ao ditado: “quem bebe da lona do circo, nunca deixa de ser cirqueiro.” O palhaço bem sabe quão verdadeiras são essas palavras: “Existe uma diferença entre quem é de circo e quem gosta disso e quer ser cirqueiro. Quem é nascido em circo, o vê como sua casa e quem gosta de circo fica um pouco, mas sempre pensa na casa onde mora.”

Ao final do espetáculo, as luzes já querem se apagar e a música quer se guardar para o outro dia. A pintura da face já está borrada pelo suor, a platéia não é mais ansiosa nem tímida, mas alegre. Quando o esforço dos integrantes é reconhecido, uma salva de palmas ecoa pelo brinquedo de lona. O palhaço se emociona satisfeito pelo trabalho e não pensa em outra profissão: “Quero continuar trabalhando no picadeiro até os últimos dias de minha vida”. E completa orgulhoso: “Se não existisse o circo, eu o inventava!”

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Chega de saudade

"Era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas, e que graças a este artifício conseguimos suportar o passado." - Gabriel Garcia Márquez
Você já tem alguns anos ou algumas décadas e poucos amigos. Uma coleção de rostos conhecidos. A verdade é que deles o sabido é insuficiente, e a nostalgia engana. Não chega a ser saudade, mas sim uma vontade de viver aquela época novamente – o que são, sim, duas coisas bem diferentes. É preciso deixar as pessoas irem, assim como virem e voltarem, em seu tempo, a todo tempo. Chega de não-sentir tanta saudade e a declamar a qualquer um como fazemos aos amigos de infância, às pessoas com quem convive, a quem se ama. Façamos jus a estes últimos e admitamos quando for pura incapacidade de seguir em frente, de aceitar a mudança, de refazer a mente. A lembrança reconstrói os fatos de uma forma sempre mais amena, sutil e doce. Pois então, façamos isso com o presente e reconheçamos os momentos verdadeiros, as dores fiéis e os amores de fato únicos. Deixemos de lado essa manifestação bit-amigável, que faz de todos nós populares. Deixemos as saídas que nunca acontecerão, as pessoas que nunca foram e nunca serão. É preciso abrir mão, ser apenas vão, guardar o que realmente foi, e que seja bonito sem precisar do tempo pra enfeitar.