sábado, 23 de outubro de 2010

Enquanto a cidade dorme

Pode ser para comer o famoso lanche de mortadela ou comprar especiarias para um prato exótico, abastecer a despensa de casa ou toda a cozinha de um restaurante. Seja uma visita turística, uma parada para vislumbrar a arquitetura do século passado ou apenas um ato cotidiano de um morador das proximidades. Por um motivo ou por outro o fato é que o Mercado Municipal de São Paulo recebe cerca de 14 mil visitantes diariamente. O que vão encontrar muitos já sabem ou podem imaginar, mas como tudo estava lá desde sua abertura, às 6 horas da manhã, tão organizado para servir a todos? Poucos conseguem responder.

Essa etapa é parte da São Paulo que ninguém vê, mas faz da cidade singular e permite a tradicional variedade e eficiência dos serviços prestados. Funcionários se reúnem toda madrugada para o comércio atacadista, mantendo os 275 boxes do local sempre cheios de produtos frescos e em quantidade suficiente para a clientela. Caminhões e caixas ocupam todo o estacionamento e arredores do mercado e quem andar por lá distraído corre o risco de esbarrar em pesados carros de frutas e legumes, ou ainda em alguém carregando grandes pedaços de carne. Há também quem jogue conversa fora, tire um cochilo ou coma um lanche, agindo naturalmente em meio aquele mundo que poucos conhecem de perto, mas que é, para muitos, apenas mais um dia de trabalho.

É o que bem sabe Adelmir João Alves, o Duda, que chega ao serviço às cinco horas. Ele trabalha há vinte e dois anos no mercado e por muito tempo chegou por volta das três horas da manhã: “Acostumamos a viver com o dia começando mais cedo, quem é feirante sabe como é isso, é outra realidade.” Há doze anos Duda passou a trabalhar na banca do Ramon, pertencente desde a inauguração do mercado à família Abdala, que veio da Síria no início do século passado.

Em 1933, na inauguração do Mercado Municipal, São Paulo era uma cidade de um milhão de habitantes. Hoje a região metropolitana conta com quase dez milhões de pessoas, o que explica a gigantesca movimentação de 350 toneladas de alimentos diariamente. Ainda assim, na região metropolitana de São Paulo as feiras livres continuam sendo as maiores distribuidoras de produtos hortícolas, embora se perceba uma notável queda em seu papel abastecedor.

De fato, observa-se que, enquanto em 1983 as feiras livres chegavam a corresponder por 48,4% do escoamento da tonelagem global comercializada na CEAGESP - Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo, na década seguinte sua participação foi reduzida para 28%. Para Duda, isso acontece porque “hoje, o movimento é muito menor do que antigamente. Atualmente, São Paulo tem várias opções e o público é mais exigente.”

Juliana dos Santos, 32 anos, compartilha a mesma opinião. Filha do proprietário da Charutaria Bruno Ltda., a única tabacaria do estabelecimento, disse que desde que a família Santos comprou o comércio, há 17 anos (ele já existia desde o início do mercado), algumas coisas mudaram no municipal. As pessoas costumavam ir em busca de frutas e verduras, mas agora muitos vão a procura de quitutes, como os tradicionais sanduíches de mortadela e os pastéis de bacalhau. “O número de supermercados aumentou na cidade, então as pessoas podem comprar em outros lugares”, explica Juliana. De acordo com a comerciante, o lugar se tornou um ponto turístico: “Alguns vem observar a arquitetura do mercado, outros já estão por perto e passam para almoçar.”

Pode ser que os clientes já não sejam os mesmos e não busquem mais as mesmas coisas, mas o mercado continua sempre lá, com suas portas abertas todo dia, à espera do chão ser sujo, do ambiente tumultuado, do silêncio quebrado. Para isso ser possível, prosseguem seus homens durante a madrugada. Como esses trabalhadores, existem muitos outros que passam longas horas embaixo de um céu sem sol, para deixar amanhecer como conhecemos. São despercebidos pela maioria, mas têm um valor inestimável para uma cidade que finge não dormir. Ao final do dia, tem sempre alguém que começa tudo de novo.

*Trabalho de Fotojornalismo. Créditos adicionais: Renata Zanquetta, Sérgio Atieh e Thaís Santana.

domingo, 17 de outubro de 2010

Homesick

Não tinha teto, não tinha nada. Desde pequena, sentia que não estava em casa, sua mãe achava muito estranho. De fato, nunca esteve. Não lembro bem como nem quando aconteceu, mas em algum momento ela mudou de cidade. Não gostou. Os anos não foram amigos, mas se adaptou. Achou um bom lugar: tinha uma praça só pra ela. Finalmente!, pensou. Quis cores e prateleiras, mas percebeu que não tinha direito, lá não era e não seria seu. Foi pra longe e sentiu muita saudade da janela antiga. Aos poucos, nem lá, nem cá, não se encaixava. Morava sempre de favores. Os livros formavam pilhas e, sobre eles, a poeira. O clima nem sempre era agradável, o sono não era leve e a vida começou a mostrar um caminho de pedras. A menina era seu próprio lar. Era de todo lugar; de qualquer lugar, de lugar nenhum.