Mostrando postagens com marcador livros. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador livros. Mostrar todas as postagens

domingo, 22 de agosto de 2010

Um poema de harmonias suaves

O céu estava bem azul
E o mar rugia ao sul
E me deixava maravilhado
Com o galho orvalhado
De perfil no céu anil
Onde o sabiá gentil
Assobiava um samba a mil
Jean Jacques-Sempé, ou apenas Sempé, é um cartunista francês famoso por seus personagens infantis tais como Le Petit Nicolas (BR: O Pequeno Nicolau) e Marcellin Caillou (BR: Marcelino Pedregulho). Seus traços, assim como as histórias por eles contadas, são sempre sutis e dignos de um olhar atento aos detalhes.

Delicadeza é a marca registrada dessa importante figura, que quando criança foi expulso do colégio por ser “distraído e indisciplinado” e mais tarde também do exército por desenhar nas horas em que deveria estar de guarda.

Não sei como poderia gostar mais dos ajustes que a vida fez a ele. Após alguns sufocos, Sempé passou a ter visibilidade. Conhecia-o por seus trabalhos publicados na New Yorker, e por isso, nas consecutivas capas da piauí também. Certo dia, passei pela Editora Martins Fontes e comprei, muito alegremente, um livro pequenino da série O Pequeno Nicolau.

Essas poucas páginas me renderam um passeio pelo mundo infantil há muito tempo não visitado por mim, a não ser pelos momentos passados com os pequenos irmãos, e digo que me diverti como se fosse um deles. Confesso que perdi a exibição do filme no Festival Varilux de Cinema Francês, mas apenas o trailer já me deu uma idéia de que deve ser bom.



Apesar de essa ser a história – acredito eu – mais conhecida do ilustrador, e conter muito de sua infância, Sempé certa vez disse que seu personagem para crianças é Marcelino Pedregulho. Hoje, em pouquíssimo tempo, pude me deliciar com a edição publicada pela Cosac Naify, em grossas folhas Garda Pat Kiara 135g/m², 40 anos após a saída na França.

Com poucas palavras e belas imagens, o livro remete a um garoto esquisitinho que ruborizava, assim, sem mais nem menos. Para ele, era normal, mas cansado tentar explicar-se toda vez, se afasta das pessoas. Até conhecer Renê Rocha, um menino tão esquisito quanto ele. Entre tantas alergias, surge uma amizade bonita e é principalmente sobre isso que a história fala: amizade. Daquelas que só mesmo um poema pra explicar.




sexta-feira, 18 de junho de 2010

Les Liaisons Dangereuses

[Esse texto contém spoiler]

Ligações Perigosas (Dangerous Liaisons), filme de 1988 dirigido por Stephen Frears, pode ser considerado como uma versão fiel do clássico da literatura francesa em que se baseia: Les Liaisons Dangereuses, de Pierre Chordelos de Laclos.


Produzido quase dois séculos após a publicação do livro, o filme retrata as relações entre integrantes da aristocracia francesa do século XVIII. Seus principais personagens são corrompidos moralmente e agem de forma libertina, alguns desde o princípio, outros, levados pelo mesmo caminho conforme progride a trama.

A caracterização por meio dos cenários e dos figurinos tem papel fundamental no resgate da época. As imagens acrescentam à história, na qual em forma epistolar só permite a existência dos personagens conforme existe diálogo. Assim, facilita o fluxo das ações. Os espartilhos, a peruca e pó de arroz, entre outros apetrechos, fazem uma inigualável analogia à importância da aparência para o grupo aristocrático, ligação oposta ao caráter do mesmo.

Ao passo que o livro começa com uma carta de Cécile Volanges (interpretada no filme por Uma Thurman), sua versão cinematográfica começa com um primeiríssimo plano da Marquesa de Merteuil (Glenn Close), principal arquiteta das intrigas que virão. Esse detalhe já mostra um pouco da direção do filme, que se volta mais aos vilões e suas artimanhas do que aos inocentes que por aqueles são manipulados.

Outro personagem importante para a peça é Visconde de Valmont (John Malkovich), antigo amante da vilã e executor dos planos dela. Ele é encarregado de desvirtuar a despreparada Cécile, que até então estava encaminhada a seu casamento, mas apaixonada por outro rapaz: Danceny (Keanu Reeves). Porém, Valmont tem outro plano, o qual acredita valer mais o seu empenho: conquistar a Presidenta de Tourvel (Michelle Pfeiffer), mulher casada, fiel e de boa conduta.

A obra literária trabalha por meio das 75 cartas dos personagens, reunidas em 319 páginas. Devido à isso, tudo indicaria uma maior veracidade dos acontecimentos narrados, isto é, se a história não fosse planejada por dois imorais, que utilizam a retórica a seu favor. Quanto a essa observação, o filme trouxe agilidade para a história, que se passa na duração de 120 minutos, além de mostrar de forma mais imparcial características do enredo e melhor entendimento dos sentimentos das personagens.

Esse é o caso da dupla de maior destaque. No filme, fica mais claro o amor de Merteuil por Valmont, além de destacar a diferença de personalidade entre os dois: Valmont sucumbe ao amor sem controle por Tourvel, vacilo inaceitável para a marquesa, que se revolta e declara guerra.

Apesar de serem consideradas fiéis aos escritos de Laclos, as filmagens de Stephen Frears suprimiram alguns personagens, como é o caso de Sophie Carnay e Prévan. Ele também mudou o nome do pretendente de Cécile Volanges, originalmente chamado Gercourt, que passou a ser Bastide. Além disso, algumas alterações no enredo foram feitas, como o destino de M. de Merteuil, e de outros que são simplesmente omitidos.

A escolha do elenco tem seus motivos. Ao ser criticado por sua escolha americanizada do grupo de atores principais, Frears declara que “o filme é sobre pessoas lidando com sentimentos – ou não lidando com eles – e atores americanos interpretam sentimentos maravilhosamente, especialmente em close up.” Essa escolha se revela coerente ao se apreciar Uma Thurman sendo persuadida, John Malkovich furioso e Glenn Close declarando guerra, entre outras cenas memoráveis.

O desenlace é trágico para todos nesse teatro de títeres, tendo um desfecho moral ambíguo, como considera Todorov. Afinal, não somente os libertinos são punidos, mas também os que por eles foram levados a falhas. Nenhum deslize é perdoado e nenhum perdão impede as terríveis conseqüências.

O filme acaba após Madame de Merteuil ser vaiada publicamente, quando todos já sabem de seus feitos. A última cena acontece em seus aposentos, enquanto ela retira sua maquiagem. Talvez alguns achem que o final proposto não fez jus às mazelas que deveriam sofrer os libertinos, mas sem dúvida foi pertinente para mostrar que nada sobrou para eles: ao final da Ópera, de nada mais vale o pó de arroz. Em outras palavras, a máscara cai.


sexta-feira, 16 de abril de 2010

Todas as margens

Me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio.

Em sua análise sobre o conto A Terceira Margem do Rio, de João Guimarães Rosa, Luiz Costa Lima diz que o Pai do narrador coloca-se “no centro, na raiz proibida ao humano”, ou seja, ele morre e aceita sua vez de partir. Essa atitude é incomum, pois o conceito de morte e o que vem após ela, além da aceitação de abrir mão da vida sem relutância extrema e é inconcebível em termos de razão humana. Essa mesma razão é limitada pela impregnação mágica estilística contida na história. Em vez dessa magia apenas introduzir um universo aquém do possível imaginável, ela demonstra uma racionalidade radical de quem não aceita partir para a terceira margem, uma margem do Além. É nesse ponto que o narrador para, não aceitando a troca proposta dos lugares e mantendo “o seu compromisso com o reino do humano, onde persiste no desconhecido da insegurança.” Sendo assim, existe um duplo comprometimento com o esse reino: o personagem é mortal e efetivamente morre, cumprindo seu ciclo vital; mas não encara a vez de morrer, persistindo no desconhecido da insegurança que aflige todos os pertencentes à margem real do rio, a da vida.
É para se chegar nesse ponto - o da morte do personagem Filho, que Walnice N. Galvão, ainda sobre o mesmo conto, diz que “tem-se que encarar nossa vez de morrer, mas detendo a opção, não de não morrer, mas de não encarar a nossa vez de morrer”, completando ainda que “esta última é a que o narrador faz”, ou seja, ele morre – inevitavelmente como todos os humanos, e como a maioria deles, não encara sua vez de partir. Essa explicação de Walnice deixa inevitável o entendimento de uma mensagem possível do conto: todos nós morreremos e não obtemos a possibilidade de assim não o fazer, o que está ao nosso alcance é apenas aceitar ou não esse momento, como fizeram o pai e o filho, respectivamente.
Sendo assim, podemos perceber que ao tratarem desse conto de João Guimarães Rosa, Luiz Costa Lima e Walnice N. Galvão tomam posições de confluência, apesar de não expressadas com as mesmas palavras: ambos analisam os personagens por sua habilidade de aceitar ou não sua conclusão do ciclo vital, concordando que a atitude primeira do Pai é contrária à reação final do filho.


*Esse texto é um trabalho baseado no conto A Terceira Margem do Rio, presente no livro Primeiras Estórias, de João Guimarães Rosa, e nas análises do mesmo feitas por Walnice N. Galvão e Luiz Costa Lima.